sábado, 1 de novembro de 2008

Sobre a morte

O Reboliço acordou cheio de vigor e, no espírito do Dia dos Mortos (o de louvar os que se foram e honrar a sua memória), releu em voz alta as páginas derradeiras do magnífico romance que é Quincas Borba - maldisse entretanto a crueldade do autor com D. Tonica, a solteirona a quem fez morrer o noivo três dias antes da boda - e, relendo-as, isso o obrigou a voltar ao início, ao ponto em que o primeiro Quincas Borba, o filósofo de Barbacena, explica a Rubião, protagonista em quantidade que não em qualidade, o princípio da Humanitas e a sua importância acima do acidental:

....Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó.
....— Como foi?
....— Senta-te.
....Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas Borba continuava a andar.
....— Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a espera no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.
....— Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.
....— Não.
....— Não?
....— Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro acto dessa série de actos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se, em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o facto era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro, mas Humanitas (e isto importa, antes de tudo), Humanitas precisa comer.
....Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender; mas não dava pela necessidade a que o amigo atribuía a morte da avó. Seguramente o dono da sege, por muito tarde que chegasse a casa, não morria de fome, ao passo que a boa senhora morreu de verdade, e para sempre. Explicou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e acabou perguntando-lhe:
....— E que Humanitas é esse?
....— Humanitas é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender isto, meu caro Rubião; falemos de outra coisa.
....— Diga sempre.
....Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.
....— Queres ser meu discípulo?
....— Quero.
....— Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o remate das cousas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não ele, é Humanitas...
....— Mas que Humanitas é esse?
....— Humanitas é o princípio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, — ou, para usar a linguagem do grande Camões:

Uma verdade que nas coisas anda
Que mora no visíbil e invisíbil.

....Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?
....— Pouco, mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
....— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o carácter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das acções bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma acção que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
....— Mas a opinião do exterminado?
....— Não há exterminado. Desaparece o fenómeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás-de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
....— Bem; a opinião da bolha...
....— Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água. Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.

(Machado de Assis, Quincas Borba, 1891; Lello & Irmão Editores, Porto, 1984, pp.11-15)

O Reboliço entende estas palavras como o segundo Quincas Borba, de quem o primeiro diz "Não ele, é Humanitas..." Partilham a raça. Este é "um cão, um bonito cão, meio tamanho, pêlo cor de chumbo, malhado de preto."