sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Moinhos na Poesia (32)

CORREIO AZUL

Caro amigo, fazes bem em desertar
desta guerra de postiços ideais,
onde o trigo é disputado por moinhos
desleais. De que vale o esconjuro
de um esgar, face ao íntimo perigo
que este curso de poeira representa?
É melhor guardar distância desses fumos,
sob o risco de perder um património
de perguntas inquietas, de deslumbres,
no contágio com a lepra dos canalhas.

Prometeram-nos os livros cedo lidos
um jardim de solitários reunidos
sob a força de palavras acendidas;
um lugar além do mundo, onde as farpas,
as escarpas, os gorazes, os algozes,
não teriam padroeiro nem mercado
pra vender o vasilhame de batidos
elixires, cujo gás lhes alivia
não sabemos que negócios intestinos.

Custa muito, no final, abrir os olhos
face ao foco da verdade: este charco
dos letrados não difere do paul
onde Dédalos estudam, mandatários
do betão, dos piratas mais felizes.
Uma furna de lacraus, onde tudo
se resume à traficância
de postais de boa-morte, à gerência
dos gemidos, a galantes vernissages
e bebidos mecenatos, ao pecado
de servir a mais senhores.

É ver quem mais se move a reunir
sua tropa de palavras mercenárias,
à conquista de colinas de dejectos
em Paris e Nova Iorque levantadas,
em Atenas, em Uruk, Jericó,
em qualquer sub-instituto de lusófonos
pagodes. Tudo serve, quando serve
sua glória de esculpir em pó de giz.

Não há tule para tanta fantasia.
Dramatontos, remancistas, poetantos
que não custa quase nada perceber
porque varam as revistas, os secretos
corredores do ministério, ou se jogam
por atalhos de cartão e cortesia
para o céu das editoras e colóquios
outdoors, para grémios e prebendas,
embaixadas, galardões de prime-time,
golden card e viajados, reputados,
deputados e, por fim, sepultados
em unives, de Aberdeen a Zanzibar,
pelos cúmplices de sempre.

Fazes bem em exilar-te, pois o cheiro
que se ouve, neste cais de filistinos,
só convida a desistir. Estás a salvo,
pelo menos, da peçonha dos olhares,
dos abraços inimigos, do aplauso
rebuçado, desta vida que nos mente.

Vê se guardas um lugar para este
teu amigo, que te abraça, a caminho.
(José Miguel Silva, Dezembro de 2000)