Na aldeia havia as adegas. A tia mandava ir buscar vinho para o comer, ia-se às adegas. Havia a adega da rua de trás, mais próxima da mercearia, e havia a do primo Manel Inácio - a adega do Caiado. Era a mais concorrida porque era a maior e ficava no centro da aldeia. À adega do Caiado íamos só com autorização da mãe, que nos endireitava as saias dos vestidos ou as golas das camisas e dizia, resignada, "Pronto, vão lá. Mas não se ponham a comer tudo o que ele vos der."
O primo Manel Inácio era tão bondoso como era alto e gordo. Era tão amigo de dar quanto lhe eram lentos o olhar e a voz: "Olh', olh', olhós algarvios...", dizia devagar, com pausa entre cada palavra inacabada, quando chegávamos e as nossas três silhuetas se recortavam para dentro da adega escura, sempre mais escura que o dia, mesmo se a porta era um alto portão escancarado. Também lentamente, a olhar para um lado e para o outro, as sombras escuras à nossa volta, passávamos a lonjura do que deveriam ser quatro ou cinco metros que iam da soleira ao balcão; por duas filas de mesas quadradas com homens sentados que, minuto após minuto, reconhecíamos da família: "Tu és da Maria ou da Nita? Dá lá saudades, que ainda somos primos."
O primo Manel Inácio era tão bondoso como era alto e gordo. Era tão amigo de dar quanto lhe eram lentos o olhar e a voz: "Olh', olh', olhós algarvios...", dizia devagar, com pausa entre cada palavra inacabada, quando chegávamos e as nossas três silhuetas se recortavam para dentro da adega escura, sempre mais escura que o dia, mesmo se a porta era um alto portão escancarado. Também lentamente, a olhar para um lado e para o outro, as sombras escuras à nossa volta, passávamos a lonjura do que deveriam ser quatro ou cinco metros que iam da soleira ao balcão; por duas filas de mesas quadradas com homens sentados que, minuto após minuto, reconhecíamos da família: "Tu és da Maria ou da Nita? Dá lá saudades, que ainda somos primos."
O balcão do Caiado era longo e alto, muito alto para as nossas alturas. O mano e a mana não lhe chegavam, por mais que pendurassem as manitas no rebordo - fosse como fosse, a atenção estava no que ficava ao alcance dos olhos: a montra de vidro dava a ver os pacotes de alcagoitas, o que ali vínhamos cobiçar. Quando levávamos o primo Henrique, bebé, lá vinha o Manel Inácio pegar-lhe ao colo, homem grande com o pequeno nos braços a apontar para todos os vidrinhos de garrafas, jarros, copos, pires com tremoços. Os meus olhos, de cuidado, seguiam o pequeno primo, afilhado. Então, atrás dos dois começava a reparar nos papéis malamente pendurados que enchiam as paredes: calendários com mulheres só-mei-vestidas, uma página ou outra da Gaiola Aberta, a tabela dos jogos do clube da aldeia, um aforismo copiado em papel manteiga. Para lá do balcão e do estrado de madeira de onde o Caiado aviava, para lá da parede que separava da cozinha, havia as talhas, enormes, bojudas do chão ao tecto. Depois disso havia de ser o quintal, mas era terreno por conhecer, como proibido.
Hoje, na aldeia só há taberninhas, tascas: o Correia, no Moinho de Vento, perto do campo da bola, e um ou outro café com a arca de gelados cá fora. As adegas, onde os homens cantavam e à noite faziam do silêncio da aldeia um lugar onde a gente se aninhava, fecharam, foram demolidas, ficaram sem ninguém.