quinta-feira, 3 de julho de 2014

"O Cão Através dos Tempos" (na Cão Celeste nº 4)

Eu tive dois cães na vida. Um chamava-se Carolina, era uma gata. A Carolina foi lá para casa mais ou menos pequena, era cachorrinha, mas já muito sabida. Siamesa de rabo torcido e curto, a cor do pêlo a variar entre o bege e o cinza clarinho, com as pontas das orelhas e das patas, o focinho e uma que outra tonalidade - não se poderia dizer mancha - a escurecer. Era, já disse ali, muito sabida. Ia aprendendo, ladina de rápida, e ensinava logo. Ou mostrava que aprendia. Sabia bem, por exemplo, o que queria - de comer, de lugar onde estar, de clima do dia. E sabia que muitas das coisas que queria eram mais ferozes do que a sua inteligência. Acasalar. Era a bruteza que mal aceitava: o que sofria no querer não tinha descrição: uivos ouvidos do sexto andar para a rua, nas ruas de trás, e facilmente ganhava aos gatos da vizinhança. Acasalou, se não me engano, duas vezes. De incesto, com um avô, ou tio-avô, ou trisavô, tanto se lhe dava, desde que fosse gato macho como ela não era. Uma dor só, o querer, ficava só dor com o não querer, que de igual ferocidade eram os gritos do acto. Nada fez entender nunca, aos dois machos com que acasalou, e pelo ar confundido que ganhavam, que o rigoroso cumprimento daquela vontade (que em rigor a cumpriam, e mais não lhes chegava ela a pedir-lhes) não servisse o fim do sofrimento mas o aguçasse. Cadelas... As bogas demasiado quentes. Que as queria, bastava uma fervura para amaciar a carne e lhes ferrar o dente. “Espera, não sejas sôfrega, Carolina,” nada. Aquilo devia andar um ou dois dias com dor no queimado céu da boca, mas era o céu que ganhava com as bogas quentes. A janela. Mas a janela nunca a enganou, ali sempre se controlava e vencia a vertigem do lançar-se. Horas, de horas a fio do lado de dentro, se era Inverno, a língua mínima a varrer cada quadrante de pêlo curto, cada pele nua entre os dedos almofadados, o rosa da língua e o rosa da pele, o sonzinho de raspar ao de leve a ouvir-se quase amplificado pelo vidro. Ou do lado de fora, entre os poucos vasos da varanda, se fazia mais calor, a cabeça através das grades de ferro, focinho perpendicular à rua pequenina, que via, com a curiosidade a fazer-lhe mover cabeça e mais nada, lá em baixo. Queria a janela, a Carolina, e tinha-a, e dia após dia a gozava como ninguém.

O outro era o Sorna. O Sorna fez transformações. Mudou a mãe de uma pessoa para outra. Chamou-a, do canto do quintal onde dormitava, enquanto os irmãos de ninhada brincavam, reboludos, caudazinhas espetadas de ter nascido e querer sondar com as anteninhas tudo. O Sorna não. O mundo todo de que precisava estava no espaço do seu ser, pêlo branco, definidas manchas cor do mel que se lhe derramava dos olhos. Chamou a mãe e a mãe trouxe-o lá para casa. Foi pequeno pouco tempo: os sete ou oito meses de o criarmos para lhe fixar a afeição. “Anda, Sorna.” Qual saltos, saltinhos, agarrar de trela. Era nas calmas. Assim que se achava na rua, se dava uma corrida, era a trote baixo. “Podem mudar-lhe o nome, a gente é que lhe pôs Sorna, que ele mal se mexe.” Muda nada. “Anda, Sorna.” Nunca percebeu para que foi isto de estar aqui. Sair, sim, saía. Saía mais se o deixassem preso muito tempo. Se o prendessem, queria sair. Estando solto, dava a sua voltinha, e isso, nada mais. Encostava-se. O gozo de se rebolar na terra vermelha, depois de lhe darem banho? Ah, sim. Era. Ou não. As trombadinhas que, do corpanzil em que se tornara, mandavam a mãe ou a mim ao chão, deixavam nódoas negras do amor doméstico dele. Também. Talvez. O Parafuso, contingente da essência que foi multiplicar-se aquele seu ser. Isso seria. O mel dos olhos do Sorna só dizia “Estou aqui. Deixa-te ficar, não precisamos de fazer grandes corridas.”

Tive dois cães, que foram como um cão de vida única, colada aos outros cães todos que moram no universo do mundo. O Sorna, que era um cão, e a gata Carolina.

(Escrito em 2 de Setembro de 2013 - altura, mais dia, menos dia, do desaparecimento último do Sorna - para a Cão Celeste nº 4, onde veio a ser publicado com ilustrações magníficas de Bárbara Assis Pacheco.
Republicado aqui por ocasião do lançamento do nº 5 da Cão Celeste.)