Levaram-na de carro os quase vinte quilómetros desde a casa até ao hospital. Era um carocha amarelo que fazia um barulho engraçado com o motor, conduzido pelo Sr Duarte. Ia no banco de trás, sem cinto nem cadeirinha (não era coisa que se usasse há 31 anos). De meias de lã, um gorro de borla grande na cabeça e o casaco de pano forte a agasalhar-lhe o corpo. Chegaram à cidade: a senhora que a levava abriu a porta do carro e deu-lhe a mão. "Anda, vamos ver os teus manos." Pôs os pezinhos no passeio, via a mão pequenina na mão rechonchuda da senhora e olhou para cima, para o rosto dela longe do seu. Uma das orelhas começava a destapar-se e ajeitou o gorro com a mão livre. Estava calma e ia no passinho curto, mas a senhora quereria talvez mais desembaraço: pegou-lhe ao colo, para seguirem mais depressa. Dali, sentada sobre o antebraço dela, via-lhe a cara muito maior, vermelha do frio e alegre. "O teu pai já lá deve estar."
O carro parara perto da entrada e não tiveram de percorrer muito até estarem de novo a coberto do ar de Inverno. Viu-se outra vez no chão, um chão de ladrinhos pretos e brancos - ou, antes, cinzentos e amarelados, do desgaste dos pés sobre aquelas pedras. À frente havia uma escadaria alta, de degraus largos acastanhados (ou seria da obscuridade do interior, comparada com a luz que estava lá fora?). Tinha de levantar bem cada perna para ir subindo, degrau a degrau. A senhora distraía-se a conversar com o Sr Duarte e a ela segurava-lhe apenas na mão e conduzia-a. O pé da senhora, ao seu lado, quase não se levantava de um degrau para o outro; olhava para o seu e parecia-lhe desmesurado o esforço que tinha de fazer para conquistar mais outro pedaço de escada. Quando, ao fim de algum tempo , o corredor apareceu, era longo e mais iluminado. Na sua ideia, pensou em correr por ali fora, mas ficou quieta - não sabia onde estaria a mãe, era melhor que fosse seguindo o passo da senhora. Ao longo do corredor havia portas abertas, por onde via as pernas das pessoas junto a umas camas altas. Mas, embora lhe parecesse haver muita gente naqueles quartos com paredes às quais não via o fim, à sua volta tudo estava em silêncio. O que o quebrava, num compasso que a mantinha alerta, eram os passos de alguém com saltos mais afirmativos, uns rápidos, outros menos velozes. Ao seu lado, a senhora usava sapatos com sola de borracha, que chiavam um nadinha, mas só quando pensava nisso.
Quase pararam em frente a uma porta e, antes que se apercebesse de mais, entraram por um dos quartos. Levantou um pouco o queixo, endireitou-se para ficar mais alta e conseguiu ver a cabeça da mãe, sentada na cama grande igual às outras que vira antes a partir do corredor. "Vai lá vê-los. Estão ali naquela caminha pequenina. Estão lá os dois." Teria ouvido estas palavras, mas o silêncio era que lhe dominava as ideias. Não parecia ter sido comandada por aquela ordem. Apesar disso, contornou devagar a cama grande e, ao fim de uns dez ou doze passinhos, quando alcançou a outra cama, levantou os braços curtos, a querer chegar à beira das grades brancas. Era isso que via: o branco das grades e alguma coisa fofa e quente, de lã. Num dos extremos da cama entendeu que o montezinho de lã era interrompido, mas não conseguia ver por quê. A senhora que a trouxera deu dois passos para chegar até si e levantou-a no ar. Dali de cima viu os dois pontos que interrompiam a manta de lã clarinha: duas partes de esferas cor de castanho avermelhado, cobertas por uma penugem; em cada uma destas parcelas de esferas via uns risquinhos rasgados. Fez girar a cabeça para um lado e para o outro, sem se convencer ao certo do que tinha perante os olhos. Não foi porque percebesse de repente, não por uma qualquer iluminação extra-humana. Foi só que as palavras lhe saíram porque se lhe tinham formado à beira da boca, instigadas por tudo o que ouvira e vira naquele dia, e não souberam conter-se. Disse-as, e o espanto com que as ouvia acentuou a força com que as pronunciou: "Eles são só meus, são meus e de mais ninguém!"
Contam-lhe, que não tem memória disso.
O carro parara perto da entrada e não tiveram de percorrer muito até estarem de novo a coberto do ar de Inverno. Viu-se outra vez no chão, um chão de ladrinhos pretos e brancos - ou, antes, cinzentos e amarelados, do desgaste dos pés sobre aquelas pedras. À frente havia uma escadaria alta, de degraus largos acastanhados (ou seria da obscuridade do interior, comparada com a luz que estava lá fora?). Tinha de levantar bem cada perna para ir subindo, degrau a degrau. A senhora distraía-se a conversar com o Sr Duarte e a ela segurava-lhe apenas na mão e conduzia-a. O pé da senhora, ao seu lado, quase não se levantava de um degrau para o outro; olhava para o seu e parecia-lhe desmesurado o esforço que tinha de fazer para conquistar mais outro pedaço de escada. Quando, ao fim de algum tempo , o corredor apareceu, era longo e mais iluminado. Na sua ideia, pensou em correr por ali fora, mas ficou quieta - não sabia onde estaria a mãe, era melhor que fosse seguindo o passo da senhora. Ao longo do corredor havia portas abertas, por onde via as pernas das pessoas junto a umas camas altas. Mas, embora lhe parecesse haver muita gente naqueles quartos com paredes às quais não via o fim, à sua volta tudo estava em silêncio. O que o quebrava, num compasso que a mantinha alerta, eram os passos de alguém com saltos mais afirmativos, uns rápidos, outros menos velozes. Ao seu lado, a senhora usava sapatos com sola de borracha, que chiavam um nadinha, mas só quando pensava nisso.
Quase pararam em frente a uma porta e, antes que se apercebesse de mais, entraram por um dos quartos. Levantou um pouco o queixo, endireitou-se para ficar mais alta e conseguiu ver a cabeça da mãe, sentada na cama grande igual às outras que vira antes a partir do corredor. "Vai lá vê-los. Estão ali naquela caminha pequenina. Estão lá os dois." Teria ouvido estas palavras, mas o silêncio era que lhe dominava as ideias. Não parecia ter sido comandada por aquela ordem. Apesar disso, contornou devagar a cama grande e, ao fim de uns dez ou doze passinhos, quando alcançou a outra cama, levantou os braços curtos, a querer chegar à beira das grades brancas. Era isso que via: o branco das grades e alguma coisa fofa e quente, de lã. Num dos extremos da cama entendeu que o montezinho de lã era interrompido, mas não conseguia ver por quê. A senhora que a trouxera deu dois passos para chegar até si e levantou-a no ar. Dali de cima viu os dois pontos que interrompiam a manta de lã clarinha: duas partes de esferas cor de castanho avermelhado, cobertas por uma penugem; em cada uma destas parcelas de esferas via uns risquinhos rasgados. Fez girar a cabeça para um lado e para o outro, sem se convencer ao certo do que tinha perante os olhos. Não foi porque percebesse de repente, não por uma qualquer iluminação extra-humana. Foi só que as palavras lhe saíram porque se lhe tinham formado à beira da boca, instigadas por tudo o que ouvira e vira naquele dia, e não souberam conter-se. Disse-as, e o espanto com que as ouvia acentuou a força com que as pronunciou: "Eles são só meus, são meus e de mais ninguém!"
Contam-lhe, que não tem memória disso.