Uma vez por outra, a mulher pensava nele. Tinham passado tantos anos juntos, cumprido tantos rituais, que agora lhe parecia estranho não ter a sua presença. Não era sempre - era um pensar intermitente, desencadeado por circunstâncias triviais.
Sentou-se do lado de dentro da janela aberta. Encostou a cadeira ao parapeito, para se chegar mais à aragem, enquanto olhava para dentro da casa, de cabeça para trás, inclinada a sentir no cabelo o fresco daquele dia. Trouxera um livro para sentar-se a ler, mas mantinha-o fechado por baixo das mãos, no colo. Ouvia música vinda de uma casa mais abaixo na rua, de alguém que tinha também aberto a janela depois da chuva de toda a semana. Fechava os olhos e ouvia-a, a entrecortar o "shhhhhhh" dos automóveis sobre o asfalto ainda molhado: "shhhhhhhhhhhh". Alguém corria no passeio do outro lado da rua; deste, alguém levava pela mão uma criança, que cantarolava uma lengalenga qualquer. Mais acima, talvez na casa onde vivia o casal de reformados, a mulher podava as rosas em silêncio, enquanto o marido lhe ia falando dos homens com quem conversava todas as manhãs a caminho da padaria. "Shhhhhhhhhhhhhhhh", passava outro carro. Passavam lentos, sempre. Tomou consciência do peso da cabeça sobre o pescoço e quis libertá-la. Sentou-se mais confortável na cadeira, endireitou-se, ficou com todo o corpo mais dentro da casa e logo os sons da rua ficaram distantes, a ecoar como numa caverna. Deixou-se escorregar, esticou as pernas e repousou a cabeça nas costas da cadeira. Deixou o livro no colo, pousou as mãos sobre o peito, os dedos cruzados, e fechou os olhos.
"Tharé to lié tchoramé oubiré oubijo ro ouni ré", cantava a melodia. "Quando penso em ti já não sei onde estou, porque sinto tanto a tua falta."