quinta-feira, 15 de março de 2007

SOBRE O PRODUZIR PENSAMENTO À MEDIDA QUE SE FALA (III e última parte)

(As duas primeiras partes podem ser lidas aqui e aqui.)

"Algo muito diferente acontece quando o espírito, antes de qualquer enunciação, tem completo o pensamento. Nessa altura, tem de ficar-se pela mera expressão e isso, em vez de o estimular, não tem outro efeito senão o de torná-lo mais lasso. Então, quando uma ideia se exprime de maneira confusa, não significa que resulte de um pensamento também confuso; pelo contrário, pode dar-se o caso de as ideias mais confusamente expressas serem as que foram pensadas com mais clareza. Muitas vezes, numa reunião em que através de uma vivaz conversa ocorre uma impregnação contínua dos sentidos com ideias, aquelas pessoas que, por serem menos habilidosas no discurso, por regra se retraem, de repente são inflamadas por um movimento convulsivo, tomam as rédeas da conversa e trazem ao mundo algo incompreensível. Sim, pareceria que, tendo chamado para si a atenção, através de um gesto embaraçado dão a entender que elas mesmas já não conseguem saber ao certo o que tinham querido dizer. É possível que tais pessoas tenham pensado algo de facto acertado e muito claro. Mas a alteração repentina de actividade, a transição do seu espírito, do pensamento para a expressão, reprimiu toda a excitação do espírito, necessária à manutenção do pensamento como urgente na sua criação. Em casos assim, é mesmo indispensável ter o discurso logo à mão, para que aquilo que a um tempo tivermos pensado, e que nesse mesmo tempo não tivermos conseguido extrair de nós, possamos, tão depressa quanto possível, em sucessão exprimir. E em geral, aquele que, de entre dois de igual clareza, com maior rapidez se avançar ao seu oponente, sobre este terá vantagem, pois mais forças do que ele trará para o campo de batalha. Que uma certa excitação da mente, também para a apresentação de ideias que possamos já ter tido, é necessária, torna-se ainda mais óbvio quando a uma mente aberta e esclarecida se fazem perguntas como: o que é o Estado? Ou: o que é a propriedade? Ou coisas deste tipo. Se estes jovens se encontrassem numa reunião em que sobre o Estado ou sobre a propriedade se discorresse durante algum tempo, talvez chegassem com rapidez, por comparação, separação e combinação de conceitos, à sua definição. Porém, aqui, onde falta totalmente a preparação do entendimento, vêmo-los deterem-se e só um examinador incapaz diria que não sabem definir. Não que nós saibamos, mas antes que um certo estado nosso sabe. Só os espíritos vulgares, pessoas que do que o Estado seja aprenderam ontem e amanhã terão já esquecido, terão aqui a resposta pronta. Talvez de facto não haja pior ocasião para se expor as qualidades do que precisamente um exame público. Tirando o facto de ser detestável e ferir e provocar a sensibilidade que um qualquer erudito negociante de cavalos nos examine o conhecimento e que, consoante sejam cinco ou seis, assim nos compra ou abandona: é tão difícil do sentimento humano extrair melodia e dele sacar o seu som peculiar; é tão fácil desafinar entre mãos inábeis, que mesmo o mais traquejado conhecedor dos homens, que fosse magistralmente versado na obstetrícia dos pensamentos, como Kant lhe chama, poderia aqui cometer erros devido ao desconhecimento do seu puérpero de seis semanas. O que, aliás, na maioria dos casos ainda garante a esses jovens, mesmo aos mais ignorantes, um bom resultado é a circunstância de os próprios ânimos dos examinadores, quando o exame é público, estarem demasiado constrangidos para conseguirem fazer um juízo isento. É que não só se sentem frequentemente as indecências de todo este processo - claro que nos envergonharíamos de pedir a alguém que esvaziasse à nossa frente a sua bolsa, quanto mais a alma -, como também a sua própria razão terá aqui que ser sujeita a uma inspecção perigosa, e os examinadores bem podem agradecer a Deus quando, eles próprios, conseguem sair de um exame sem se terem exposto, porventura com maior ignomínia do que o recém-licenciado que examinaram.
(A continuar)"
(Escreveu Kleist que continuaria, mas suicidou-se e deve ter-se esquecido de dar seguimento, pelo menos a isto. O ensaio foi escrito provavelmente entre 1805 e 1806 e publicado pela primeira vez em 1878. A versão inglesa que usei está neste livro; a castelhana, neste. O texto em alemão vem transcrito aqui. Para traduzir as frases derradeiras tive a ajuda inestimável da Ana Cabral. Obrigada, amiga!)