segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Da tradução como inspiração

aqui o escrevi - Aníbal Fernandes é um dos meus tradutores predilectos. Foi por ele que li A Cidade Proibida (René Leys), de Victor Segalen, na primeira versão portuguesa, de 1983. A Assírio reeditou há um ano e pouco o livro: fez-lhe uma capa nova, inspirada na da edição francesa em que surgiu a primeira vez o relato em 1922 (depois já da morte de Segalen) e, sei lá se por iniciativa dele ou incitado pela editora, Aníbal Fernandes reescreveu o prefácio e reviu a sua própria tradução. De 1983 a 2006 vão 23 anos. É muito dia, muita hora a pensar no mesmo texto, nas palavras de um "livro que não há" (como diz a terminar o prefácio de 1983). Para já, confrontei apenas os dois prefácios (um pouco surpreendida com as diferenças neles e nas duas traduções, já que nada na edição refere "tradução revista"). O discurso de Aníbal Fernandes em 2006 soa mais maduro, mais comedido, mais rigoroso. Tem a mesma excelência do primeiro, mais seriedade. Mas perdeu - ou será uma tinta nostálgica emborcada em cima do papel da minha leitura anterior - uma rapidez, uma pressa que havia no de 1983. Uma pressa que, por exemplo, amachucava nisto parte da biografia do autor:

Literariamente marginalizado em vida, Victor Segalen é agora uma boa reputação póstuma com direito ao inquérito que apenas consegue dar realce, numa biografia neutra, à mãe autoritária, à miopia forte e à morte singular. Mal damos por ele nas suas viagens de fim de mundo, vinte e cinco anos depois de nascido em Brest, 1878, quando seis planetas em signos de terra lhe concertam no céu astrológico um «horror ao mar» que passa a ironia maior na sua carreira da Marinha.

Na edição nova, A. Fernandes escolhe não incluir um poema de Segalen, "Cidade Roxa Proibida," que aparecia na anterior (o mais certo é ter tido razões de direitos de publicação, pois eu cá via sentido na chamada daqueles versos para antes do mergulho no relato). Mas compensa, com a citação de uma quadra do autor, cuja origem não identifica e que reza desta linda maneira:

Sinto-me em prazer até ao cimo. Com todos os instintos. Estimulo
Os sentidos dilatados além dos sentidos, mais veloz
Que o espírito, que o ar. Espalho-me sem limites.
Estendo os braços: e chego aos dois fins do Tempo.

Os fins do tempo, aqui, podem ser as datas de duas edições do mesmo texto, pelo mesmo tradutor.