sábado, 14 de abril de 2012

"Obra poética de teatro biográfico"

(Foto do programa e da alcatifa do Teatro Real: Reboliço, a pensar. Quantas vezes se poderá escrever uma auto-biografia? Quantas vezes, tornada teatro, será preciso que a auto-biografia seja função? Quantos autores tem uma auto-biografia? Marina Abramović não é diferente de outros artistas: trabalha "com materiais procedentes da sua própria vida". Essa, pelo menos, é uma ideia  de partida. Mas o percurso, o percurso da obra; o como de ela ser feita, o como deixa de ser a conversa em que se conta a uma ou duas pessoas a história da nossa vida e passa a ser uma vida ali à frente, outra, diferente e completa, mostrada a plateias inteiras, de ninguém a vida, a morte de ninguém.
Vida e Morte de Marina Abramović, a coisa toda, contada do nascimento até ao funeral, é uma peça de teatro e de música. Nela, o menos interessante é saber que uma mãe batia na filha pequena; ou que o pai atirou ao chão onze copos de vidro, no dia em que o casal comemorava vinte e cinco anos de péssima vida em comum. O melhor de tudo é ouvir uma actriz cantar, Marina, a sua graça no palco e na voz, sem medo de soar menos voz que a de Antony, tantas vezes gordo anjo. O melhor de tudo é testemunhar a força de um actor, Willem, o viril no palco e num fraco quadradinho por cima do fosso, enterrado em papéis de um diário seco, cujas datas e entradas não importam. O que importa se a morte vem antes do nascer?, se as separações antecedem os namoros? Na voz, tantas vezes ruivo rouca de Willem - a cantar e a caminhar de quatro sobre nuvens falsas que uma máquina despeja de cada lado do palco -, uma vida, as promessas, a dor gritada e arrastada, é tudo uma provação noite após noite, um martelar permanente daquela falha que na pedra ainda arranha, que ainda falta cinzelar no trabalho de actor. A perfeição tem um nome: incompletude.)