"Pelota espreitou a televisão, como faz às vezes quando alguma coisa no écran lhe chama a atenção – geralmente, o que mais lhe aguça a curiosidade é o futebol (fascina-a ver os jogadores a mexerem-se, a bola a ir de um lado para outro, e tenta ‘caçar’ tanto os futebolistas como o esférico). A nossa gata pequenita e travessa subiu para cima do electrodoméstico, acomodou-se como de costume entre as caixas de videos e DVDs, e olhou, inclinando a cabeça. Olhou e escutou com atenção. No écran, cantava a maior de todas: a grande Amália Rodrigues.
É como se Lisboa fosse feita para os gatos. A sua orografia irregular, cheia de colinas (mais de sete, por muito que Salazar tivesse querido igualar as da sua capital às que havia na Roma de Mussolini), dota as gentes de Portugal de prodigiosas pernas capazes de caminhar pela cidade, faz com que o passeante tenha de se treinar para alcançar os inigualáveis cantinhos dos bairros interiores, e permite uma quantidade de lugares de refúgio e descanso, ideal para os gatos. Além disso, os bairros mais próximos deste rio que já é mar, como Alfama, têm muitos edifícios desabitados, meio em ruínas, à espera de restauro urgente e necessário (é possível que, daqui a uns anos, Lisboa se modernize, e então os gatos deixarão de contar com esta vantagem, pois imagino que todas estas casas serão restauradas, primeiro, e depois habitadas). E, enquanto se esperam melhorias, os gatos têm onde morar, camas onde dormir, cantinhos e pedras para brincar, ratazanas para comer e um espaço que faria a inveja dos felinos de outros países.
Por isso mesmo, durante os meus longos passeios pelo bairro mais característico e de disposição mais irregular da cidade, pude ver muitos gatos a caminhar felizes pelas ruas, ou a descansar no interior das casas desabitadas. E, se o postal típico de Alfama mostra uma velhota assomada à janela, também podemos ver na mesma situação uma quantidade de gatos, gatos nostálgicos, gatos urbanos, gatos do porto, gatos de Alfama, gatos fadistas.
A natureza nostálgica da alma lisboeta parece estar feita também para adorar o gato. Um animal que esconde tanta saudade detrás dos seus olhos teria de ser adorado neste país, e de facto assim acontece.
[...]
E, se Lisboa e a alma portuguesa parecem comungar na perfeição com a figura do gato, o mesmo se pode dizer da banda sonora oficial da cidade, ou seja, o fado. Os gatos de Alfama parece que pensam em fados jamais escritos, parecem carregar dentro de si a música da saudade. Cada gato é um fado irrepetível. E o fado é também um gato de Alfama, ainda que, na verdade, nunca tenha escutado um único fado que mencionasse os gatos de Lisboa. Quem sabe se os letristas não quiseram deixar aos gatos dos bairros populares o lugar que mais gostam de ocupar: o lugar mais discreto, silencioso e oculto que exista. Por exemplo, entre os versos de um fado, escondido em cada espaço em branco ou em cada frase por terminar: na obscuridade do silêncio, os olhos de um gato.
Talvez tivesse sido por esta misteriosa relação que Pelota subiu tão decidida à televisão onde se projectava um concerto de Amália. Porque a minha Pelota de Chamberí tem, creio eu, alma portuguesa. É Condessa de Chamberí e Marquesa de Pombal, esta gata panibérica. Por isso o seu espírito é apaixonado, transversal, e está carregadinho de matizes. Por isso esta gata régia, e ao mesmo tempo carinhosa, se meteu no bolso do humano que a quis conhecer. Na sua vida anterior, Pelota foi uma mulher portuguesa. Quem sabe se chegou a ser a própria Amália, e por isso, ao recordar aquelas canções, ‘Foi Deus’, ‘Ai Mouraria’ ou a graciosa ‘Vou dar de beber à dor’, sobe ao televisor, agarrada à memória, como boa fadista. Por isso Pelota, Condessa de Chamberí e Marquesa de Pombal, quando nos volta a ver depois de uns dias de ausência (como estes que passámos em Lisboa, entre gatos de Alfama e gatos do Barreiro), não nos recebe com miados, mas com um fado, cantado a voz aguda e suave, quase entre sussurros, uma voz que, quem sabe, é a mesma que, anos atrás, iluminou as noites de meio mundo, em jorros, por frases cheias de uma melancólica poesia."
(Isaïes Fanlo, “Marquesa de Pombal, gata fadista”, Em Cena,
nº 10, Inverno/Primavera 2005, pp. 55-59. Tradução: Ana Soares.
A narrativa vai dedicada à Carole, que me mostrou que
Todos Temos o Teu Fado, onde se ouve, entre outras pérolas,
um holandês que não fala português cantar "Uma Casa Portuguesa"
e um travesti espanhol cantar o grande "Lágrima".
O video, em dedicatória cruzada, vai para o Isa, claro!)
Por isso mesmo, durante os meus longos passeios pelo bairro mais característico e de disposição mais irregular da cidade, pude ver muitos gatos a caminhar felizes pelas ruas, ou a descansar no interior das casas desabitadas. E, se o postal típico de Alfama mostra uma velhota assomada à janela, também podemos ver na mesma situação uma quantidade de gatos, gatos nostálgicos, gatos urbanos, gatos do porto, gatos de Alfama, gatos fadistas.
A natureza nostálgica da alma lisboeta parece estar feita também para adorar o gato. Um animal que esconde tanta saudade detrás dos seus olhos teria de ser adorado neste país, e de facto assim acontece.
[...]
E, se Lisboa e a alma portuguesa parecem comungar na perfeição com a figura do gato, o mesmo se pode dizer da banda sonora oficial da cidade, ou seja, o fado. Os gatos de Alfama parece que pensam em fados jamais escritos, parecem carregar dentro de si a música da saudade. Cada gato é um fado irrepetível. E o fado é também um gato de Alfama, ainda que, na verdade, nunca tenha escutado um único fado que mencionasse os gatos de Lisboa. Quem sabe se os letristas não quiseram deixar aos gatos dos bairros populares o lugar que mais gostam de ocupar: o lugar mais discreto, silencioso e oculto que exista. Por exemplo, entre os versos de um fado, escondido em cada espaço em branco ou em cada frase por terminar: na obscuridade do silêncio, os olhos de um gato.
Talvez tivesse sido por esta misteriosa relação que Pelota subiu tão decidida à televisão onde se projectava um concerto de Amália. Porque a minha Pelota de Chamberí tem, creio eu, alma portuguesa. É Condessa de Chamberí e Marquesa de Pombal, esta gata panibérica. Por isso o seu espírito é apaixonado, transversal, e está carregadinho de matizes. Por isso esta gata régia, e ao mesmo tempo carinhosa, se meteu no bolso do humano que a quis conhecer. Na sua vida anterior, Pelota foi uma mulher portuguesa. Quem sabe se chegou a ser a própria Amália, e por isso, ao recordar aquelas canções, ‘Foi Deus’, ‘Ai Mouraria’ ou a graciosa ‘Vou dar de beber à dor’, sobe ao televisor, agarrada à memória, como boa fadista. Por isso Pelota, Condessa de Chamberí e Marquesa de Pombal, quando nos volta a ver depois de uns dias de ausência (como estes que passámos em Lisboa, entre gatos de Alfama e gatos do Barreiro), não nos recebe com miados, mas com um fado, cantado a voz aguda e suave, quase entre sussurros, uma voz que, quem sabe, é a mesma que, anos atrás, iluminou as noites de meio mundo, em jorros, por frases cheias de uma melancólica poesia."
(Isaïes Fanlo, “Marquesa de Pombal, gata fadista”, Em Cena,
nº 10, Inverno/Primavera 2005, pp. 55-59. Tradução: Ana Soares.
A narrativa vai dedicada à Carole, que me mostrou que
Todos Temos o Teu Fado, onde se ouve, entre outras pérolas,
um holandês que não fala português cantar "Uma Casa Portuguesa"
e um travesti espanhol cantar o grande "Lágrima".
O video, em dedicatória cruzada, vai para o Isa, claro!)